Atentado do Riocentro é o nome pelo qual ficou conhecido um frustrado ataque a bomba ao Centro de Convenções do Riocentro, no Rio de Janeiro, na noite de 30 de abril de 1981, quando ali se realizava um show comemorativo do Dia do Trabalhador, durante o período da ditadura militar no Brasil. O atentado, perpretado por setores da extrema-direita do Exército Brasileiro, insatisfeita com a abertura democrática que vinha sendo feita pelo regime, ajudou a apressar a redemocratização do país, completada quatro anos depois, com a primeira eleição presidencial realizada no Brasil em vinte e quatro anos.[1]
As bombas, levadas ao complexo num carro esportivo civil Puma, seriam plantadas no pavilhão pelo sargento Guilherme Pereira do Rosário e pelo capitão Wilson Dias Machado. Com o evento já em andamento, uma das bombas explodiu prematuramente dentro do carro onde estavam os dois militares, no estacionamento do Riocentro, matando o sargento e ferindo gravemente o capitão Machado. Uma segunda explosão ocorreu a alguns quilômetros de distância, na miniestação elétrica responsável pelo fornecimento de energia do Riocentro. A bomba foi jogada por cima do muro da miniestação, mas explodiu em seu pátio e a eletricidade do pavilhão não chegou a ser interrompida. Na tentativa de encobrir o fracasso da operação, o SNI – Serviço Nacional de Informações culpou as organizações de esquerda – na época já extintas – pelo ataque. Essa hipótese já não tinha sustentação na época e anos mais tarde se comprovou, inclusive por confissão,[2][3] que ele foi uma tentativa de setores mais radicais do governo (principalmente do CIEx e do SNI) de, colocando a culpa na oposição radical pela carnificina prevista a acontecer, convencer os setores mais moderados de que era necessária uma nova onda de repressão de modo a paralisar a lenta abertura política que estava em andamento.[2][3]
A abertura de um Inquérito Policial Militar, porém, fracassou em estabelecer os responsáveis do regime, levando à renúncia do general Golbery do Couto e Silva, Chefe da Casa Civil do governo do general João Figueiredo e um dos criadores do SNI, e ao arquivamento do caso. Novamente reaberto em 1999, após o aparecimento de novas evidências, três meses de investigação autorizadas pela procuradoria-geral da República, considerando que a ato não estava coberto pela Lei da Anistia – que anistiava crimes políticos entre 1961 e 1979 – resultaram na condenação do capitão Machado por homicídio culposo, estendida ao sargento Rosário se estivesse vivo, do indiciamento por falso testemunho e desobediência do general da reserva Newton Cruz e do coronel Freddie Perdigão, falecido dois anos antes, por comandar a operação. O caso entretanto foi arquivado no mesmo ano sem qualquer punição aos envolvidos por decisão do Superior Tribunal Militar, que se considerou sem condições de mais punir os responsáveis, já que uma decisão anterior do próprio tribunal enquadrou o caso na Lei da Anistia. [1]
Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade apresentou um relatório preliminar sobre o atentado, afirmando que ele fez parte de uma ação articulada do Estadobrasileiro.[4] O episódio, com seus desdobramentos,tornou-se um marco da decadência e do esgotamento do regime militar no Brasil, que daria lugar dali a quatro anos ao restabelecimento da democracia.
Contexto político
Em 1979, o general João Batista Figueiredo sucedeu o general Ernesto Geisel na Presidência da República. Figueiredo se comprometeu com o antecessor a dar continuidade ao processo de abertura que este havia iniciado. “É para abrir mesmo. E quem quiser que não abra, eu prendo. Arrebento. Não tenha dúvidas”, afirmou ao ser questionado sobre a abertura política.[5] No entanto, praticamente toda a carreira do novo general-presidente estava ligada à chamada “comunidade de informações” do Exército, formada por organizações como o CIE, SNI e DOI- Codi, responsável direta pela repressão às atividades da esquerda; mesmo disposto a prosseguir com a abertura do regime, ele não pretendia entrar em atrito com estes setores, principalmente o CIE, cujos integrantes estavam inconformados com os rumos políticos do governo. Como muitos deles haviam sido responsáveis por centenas de casos de tortura e desaparecimento, temiam ser humilhados e punidos, caso o regime se desfizesse.
O fim da ditadura poderia, finalmente, representar o fim da comunidade de informações e seus membros receavam o possível revanchismo por parte da oposição, caso esta assumisse o poder. Por isso, para estes órgãos era interessante que a esquerda voltasse a se envolver na luta armada, de modo a justificar mais repressão política. Mas, na primeira metade da década de 1970, a esquerda já havia abandonado a guerrilha, pois não havia mais como levá-la adiante por falta de membros que foram dizimados ou estavam exilados ou de recursos, e o grande núcleo de oposição ao governo não era mais a opção pelo socialismo ou comunismo das guerrilhas de extrema-esquerda , mas a oposição civil em defesa da volta do estado democrático, fosse pelo partido oficial da oposição – o MDB – fosse pelas manifestações que pouco a pouco voltavam a sacudir o país.
Na falta de um perigo evidente, as alas mais radicais das Forças Armadas estavam dispostas a forjar ameaças para justificar uma volta à repressão mais violenta, tal como fora no governo do general Emílio Médici, e assim, dar maior importância aos órgãos de segurança.
Os preparativos
Várias medidas estranhas tomadas no dia em que se realizaria o show indicam que o atentado envolveu a participação estratégica de muitas pessoas, militares e civis, e que já vinha sendo planejado detalhadamente pelo menos um mês antes.
A poucas horas do início do evento, a segurança do pavilhão era parca em relação ao habitual. O tenente César Wachulec, chefe da segurança do Riocentro, recebeu naquele dia uma ordem para controlar exclusivamente o movimento das bilheterias, sendo afastado de suas funções habituais pela diretora de operações do Riocentro, Maria Ângela Campobianco . A coordenação geral dos seguranças foi transferida para outro funcionário, um mecânico sem qualquer experiência na área. Um mês antes disso, o antecessor do tenente Wachulec fora demitido sem justificativas. Seu nome era Dickson Grael, coronel paraquedista e pai dos velejadores olímpicos Lars e Torben Grael, bastante experiente nesse tipo de serviço.[6]
A Polícia Militar costumava destacar homens para patrulhar eventos no local, assim como em qualquer outra grande aglomeração de pessoas. Mas, no dia do atentado, o policiamento fora suspenso pouco antes do show. A justificativa foi a de que, por ser um evento privado, a responsabilidade pela segurança era exclusiva dos organizadores.
O carro que carregava a bomba – um Puma GTE cinza-metálico placa OT-0297 [7]– fora visto na tarde daquele mesmo dia no restaurante Cabana da Serra, que ficava num ponto isolado da estrada Grajaú-Jacarepaguá, parado junto a outros seis carros. Desses carros desceram cerca de quinze homens, que usaram uma mesa do restaurante para examinar um grande mapa. Depois de perceber que vários deles carregavam armas na cintura, um dos funcionários resolveu ligar para a polícia. Uma viatura atendeu o chamado mas, dada a superioridade numérica dos homens, limitou-se a anotar as placas enquanto pedia reforços. Mas os carros abandonaram o local antes que outros policiais chegassem.[6]
O atentado
Durante aquele dia, várias placas de trânsito no trajeto que leva ao Riocentro e painéis de propaganda dentro do complexo foram pichadas com a sigla VPR(Vanguarda Popular Revolucionária). Desde o final da tarde, algumas placas indicativas da direção do centro de convenções também apareceram pichadas com essa sigla. Minutos antes do início do espetáculo, o guarda do estacionamento reservado aos ônibus viu dois carros atravessarem o canteiro e se dirigirem para o local, onde, depois, explodiria o Puma. À noite, quando começou o show, apenas cinco dos 28 portões estavam abertos. Os outros teriam sido trancados, o que impediria uma saída rápida dos espectadores em caso de emergência, provocada, por exemplo, por um corte de luz.[6]
Dentro do Riocentro, cerca de 20 mil pessoas assistiam ao show organizado pelo Centro Brasil Democrático, organização ligada ao PCB, e Elba Ramalho começa a cantar “Banquete de Signos” no palco do centro de convenções.[8] :587[9] O Puma no estacionamento reservado aos artistas e organizadores levava dois ocupantes, o capitão Wilson Machado, proprietário do carro, e o sargento Guilherme Pereira do Rosário. Ambos integravam o DOI do I Exército, no Rio de Janeiro, e pertenciam ao aparelho de repressão progressivamente desativado desde 1975, que vinha praticando atentados terroristas contra personalidades políticas, bancas de jornais e sedes de publicações esquerdistas[9]; o sargento Rosário, agente “Wagner”, era treinado em montagem de explosivos e Machado eventual chefe do patrulhamento da segurança do presidente Figueiredo quando ele ia ao Rio.[9] Quando o carro começou a sair da vaga onde estacionara, um artefato dentro dele explodiu antecipadamente. A explosão inflou o teto do carro e explodiu as portas. O sargento Rosário morreu, enquanto o capitão Machado saía dos destroços ferido, segurando com as mãos as próprias vísceras expostas. [8]:587 Muitas pessoas se aglomeraram em volta do carro. Alguns dos espectadores, inclusive o tenente Wachulec, viram um homem retirar do interior duas granadas do tipo cilíndrico usado pelo Exército Brasileiro. O capitão Machado, que ziguezagueou por uns 200 metros gemendo, sentou-se numa escada que dava acesso para a plateia e foi socorrido 25 minutos depois pela neta do futuro presidente Tancredo Neves, Andrea Neves, que chegava atrasada para o show,[7] sendo levado para o Hospital Miguel Couto onde pediu que avisassem do acidente o capitão Francisco de Paula Sousa Pinto. Este, ao chegar ao hospital, identificou o ferido como capitão do Exército.Trinta minutos depois da primeira explosão, uma segunda bomba explode na casa de força, jogada por cima do muro, mas sem maiores consequências nem corte de luz. Minutos depois, um Opala branco estacionado num pátio reservado deixou o local, com seu ocupante gritando para um guarda: “Vocês ainda não viram nada! O pior vai acontecer lá dentro!”[6]
A explosão no carro não chamou a atenção do público que assistia ao show dentro do pavilhão. A segunda explosão, na caixa de força da estação elétrica, pode ser ouvida dentro dele como um ruído abafado, mas nada que provocasse inquietação. Os artistas só eram avisados à medida que deixavam o palco e de forma discreta. A plateia só foi informada perto do final do show, quando o compositor e cantor Gonzaguinha subiu ao palco e disse: “Pessoas contra a democracia jogaram bombas lá fora para nos amedrontar”.[7]
Com a chegada a perícia, mais dois artefatos explosivos são fotografados dentro do Puma.[8]:587 Pouco depois, um dos seguranças do Riocentro aproxima-se dos destroços do carro onde estão dois homens que se identificam como capitães do exército. Com a chegada da polícia, o local em volta é isolado. As redações de jornais começam a receber informações sobre o atentado e algumas delas recebem ligações anônimas informando que um tal “Comando Delta” havia agido no Riocentro para “acabar com manifestações subversivas”. [6]
Desdobramentos
Logo após o fracasso do atentado, a linha dura do Exército e o SNI iniciaram um esforço conjunto para tentar encobrir o caso.
O DOI do Rio de Janeiro (subordinado ao I Exército) divulgou um comunicado dizendo que os passageiros do Puma estavam no local a serviço, colhendo dados sobre uma possível ação subversiva. Homens ligados ao Exército informavam aos jornais que os agentes do DOI tinham sido vítimas da bomba, a qual teria sido posta entre o banco direito e a porta do carro enquanto o capitão tinha ido urinar e o sargento saíra para “esticar as pernas”.
Foi aberto um inquérito policial militar sobre o caso, e o indicado para presidi-lo foi o coronel Luís Antônio do Prado Ribeiro. Pouco tempo depois, ele já estava convencido de que os passageiros do carro eram os autores do atentado. No entanto, Ribeiro renunciou à presidência do inquérito, possivelmente por pressão de membros da “comunidade de informação”.
O coronel Job Lorena de Sant’Anna assumiu em seu lugar. O coronel havia comparecido ao enterro de Rosário, onde leu um discurso que declarava que ele fora vítima de um ato terrorista, corroborando a versão divulgada inicialmente pelo Exército, embora várias evidências a desmentissem. Uma delas era o fato da genitália do sargento ter sido destruída, o que não aconteceria se a bomba estivesse do lado do banco. Além disso, os homens do DOI carregavam duas granadas. Imagens delas apareceram inclusive no Jornal Nacional, mas, pressionada pelos militares, a Rede Globo voltou atrás e anunciou que as imagens eram de extintores de incêndio.
Outros fatos foram ignorados pelo inquérito. A caminho do hospital, o capitão Machado pediu que telefonassem para um certo número e relatassem o acidente a Aloísio Reis. Esse era o codinome do coronel Freddie Perdigão Pereira, que, à época, trabalhava no SNI mas já fora membro do Grupo Secreto, organização radical de direita, famosa por realizar atentados a bomba. O número era de um telefone do DOI.
No Puma, foram encontrados documentos em nome do capitão Machado, mas a placa era falsa. Isso contraria a afirmação de que os militares estariam a serviço no local, já que nessas situações se usava um carro oficial.
O fracasso nas investigações do atentado e do envolvimento da linha dura do regime no episódio levou à renúncia do ministro chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva. Apesar de todas as evidências, o caso foi arquivado e só foi reaberto em 1999, quando o ex-chefe do SNI, general Octávio de Medeiros, disse que soube do atentado uma hora antes que acontecesse; posteriormente declarou que a informação lhe fora dada pelo general Newton Cruz, que já saberia do plano um mês antes.[10] Mas segundo a narrativa de Cruz, ele próprio só teria sido informado, uma hora antes do atentado, que se planejava no DOI do Rio um atentado contra o Riocentro. E essa informação teria sido obtida pelo coronel Perdigão. Quatro anos depois de deixar o poder, o general Golbery do Couto e Silva, fundador do SNI, contou que “o Medeiros [general Octávio Aguiar de Medeiros, chefe do SNI] disse que o Riocentro tinha sido coisa do Coelho Neto [general José Luís Coelho Neto], mas hoje em dia eu não sei se ele realmente tinha elementos para dizer aquilo. O fato é que ele disse”.[11]
Em maio de 2014, a Justiça Federal, atendendo a pedido do Ministério Público Federal, determinou ao Exército Brasileiro que lhes fossem encaminhadas as folhas de alterações de quatro oficiais da reserva, denunciados, juntamente com outros réus, por crimes neste atentado. Segundo a denúncia, os militares reformados Wilson Luiz Chaves Machado, proprietário do Puma no qual teria ocorrido a explosão, Nilton de Albuquerque Cerqueira, Newton Cruz, Edson Sá Rocha, Divany Carvalho Barros e o ex-delegado Cláudio Antônio Guerra devem responder pelos crimes de homicídio tentado, formação de quadrilha ou bando, transporte de explosivos, fraude processual e favorecimento pessoal. Em julho de 2014, O Tribunal Federal da 2ª Região concedeu habeas corpus a quatro dos oficiais da reserva denunciados por julgar que os crimes estariam prescritos.[12]
Reabertura do caso
Novas provas surgiram dezoito anos depois daquilo que poderia ter sido o maior atentado terrorista urbano da história do Brasil. Diante disso, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados solicitou a reabertura do caso. A procuradora da República Gilda Berger aceitou o pedido, considerando que o caso não era coberto pela Lei da Anistia, nem estava prescrito: a anistia se aplica apenas aos crimes cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, enquanto a prescrição ocorreria em 30 de abril de 2001.
Após três meses de investigações, o general Sérgio Conforto, encarregado do novo inquérito policial-militar (IPM) do Riocentro, encerrou seu trabalho apontando a responsabilidade de quatro militares pelo atentado. O coronel Wilson Machado, que estava no Puma que explodiu, foi indiciado por homicídio qualificado, por ter assumido o risco de uma ação que poderia causar a morte de Guilherme (pena de 12 a 30 anos). Wilson Machado foi indiciado também pela antiga Lei de Segurança Nacional, crime que está prescrito. O general da reserva Newton Cruz, ex-chefe da Agência Central do SNI, foi indiciado por falso testemunho (dois a seis anos) e desobediência (um a seis meses). Newton Cruz foi indiciado também por prevaricação e condescendência criminosa, mas só responderá por falso testemunho e desobediência. Conforto concluiu que havia provas para indiciar o sargento Guilherme do Rosário, morto na explosão, e o coronel Freddie Perdigão, chefe da agência do SNI do Rio em 1981 e que morreu em 1996. Descobriu-se que Freddie Perdigão havia planejado o atentado.
O IPM, com 270 páginas, foi enviado ao procurador-geral da Justiça Militar Kleber Coêlho, para que oferecesse denúncia ao Superior Tribunal Militar (STM).[13][14]
Em 4 de maio de 1999, o caso Riocentro foi, arquivado pelo ministro civil do STM, Carlos Alberto Marques Soares. Segundo ele, o poder de punição do Estado teria cessado, ou seja, mesmo que surgissem novas provas, nada mais poderia ser feito, já que uma decisão anterior do STM enquadrou o caso na Lei da Anistia.[15]
Em 29 de Abril de 2014, a Comissão Nacional da Verdade apresentou um relatório preliminar sobre o caso afirmando que o atentado fez parte de uma ação articulada do Estado Brasileiro.[16]
Documento vem a público 31 anos depois
O jornal Correio do Povo teve acesso a memorandos datilografados e também manuscritos do ex-comandante do DOI-Codi, Julio Miguel Molina Dias,[17] morto a tiros quando chegava à sua residência em Porto Alegre na noite de 01 de novembro de 2012, no qual o coronel registra a mobilização que se instalou naquele quartel-sede da espionagem política do Brasil, imediatamente após a explosão do Rio centro.
São ordens, contraordens e telefonemas com a finalidade de evitar que fatos e versões indigestas ao Exército viessem à tona. O coronel Molinas redigiu parte desses memorandos, divididos em dias, horas e minutos.
A BOMBA
Quinta-feira, 30 de abril de 1981
O relatório de atividades externas do Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do Rio descreve a movimentação da unidade naquele 30 de abril de 1981. Batizada de Missão 115 — Operação Centro, a ação previa que os militares fizessem a espionagem do show no Rio centro, celebração do Dia do Trabalhador, que virou manifesto contra a ditadura. Foram escalados dois agentes, com previsão de saída às 18h40min e retorno às 4h20min, usando um Fusca. Outros dois, de forma clandestina, usaram um Puma particular. Por volta das 21h15min, tudo seguia na rotina até uma bomba explodir no Puma em que estavam os dois integrantes do DOI-Codi. À noite, de próprio punho, o coronel Júlio Miguel Molinas Dias, comandante do DOI-Codi, fez o relato de como foi informado do atentado. Ele assistia, em casa, à primeira partida da final do Campeonato Brasileiro de 1981, no Estádio Olímpico, vencida pelo Grêmio por 2 a 1.
Intervalo do jogo do Grêmio x São Paulo, telefonema do agente Reis (codinome de um militar). Disse que um cabo PM telefonara avisando que haveria um acidente com explosivo com uma vítima. Deu o nome quente Dr. Marcos…
Doutor Marcos era o codinome do capitão Wilson Luiz Chaves Machado, chefe da Seção de Operações do DOI-Codi, ferido na explosão. O relato do coronel Molinas continua, falando de como foi informado da morte do sargento Guilherme Pereira do Rosário, ao manipular a bomba:
(…) Por volta das 22h30min, cheguei ao órgão… dirigi-me à vaga n.1 do comando. (…) O Dr. Wilson (codinome de outro agente), que estava na operação, chegou logo a seguir. O agente Reis, que já chegara, avisou que recebera outro telefonema do mesmo elemento, dizendo que um sargento estava no local, irreconhecível.
A partir daí, o coronel anota, minuciosamente, como foi a longa noite pós-atentado:
23h30min — O Globo (talvez referindo-se à notícia que ouviu na Rádio Globo ou na TV) – estouraram duas bombas no estacionamento, destruindo dois carros e uma moto. No segundo carro não houve vítimas.
23h30min — Dr. Araújo (codinome de oficial) telefona para saber o que houve.
Molinas relata o estado de saúde do capitão Wilson, motorista do Puma e ferido na explosão:
23h30min — Hospital Miguel Couto…Tá sendo operado, vísceras do lado de fora. Estado grave.
De próprio punho, o coronel registra que foram dois os explosivos levados para o Riocentro:
23h35min — Uma bomba na casa de força (central de energia do Riocentro) e uma no carro.
Às 23h45min, Molinas afirma ter telefonado ao coronel Leo Frederico Cinelli, chefe do serviço de inteligência do 1º Exército, relatando os fatos. Minutos depois, recebe notícias de alguém sobre o sargento morto e registra:
23h50min — O Robot (menção a quem carrega bomba) está morto. Tem uma granada que estava no carro e botaram no chão.
Sexta-feira, 1º de maio de 1981
As anotações de Molinas prosseguem madrugada adentro. Ele trata da remoção do corpo do sargento para o hospital:
0h40min — Coronel Cinelli — Falamos sobre a ida da perícia da PE (Polícia do Exército) à paisana e a retirada do corpo.
1h01min — Tenente-coronel Portella liga ao HCE (Hospital Central do Exército) para receber o corpo do Robot (sargento Rosário).
À 1h05min, Molinas recebe ligação de uma pessoa, à qual identifica com Dr. Rodolfo, atualizando notícias sobre o capitão Wilson Machado, ferido na explosão:
1h05min — Está sendo operado, dilaceração nas vísceras.
A partir daí, as anotações se tornam esporádicas:
4h24min — Um Chevette aberto cinza metálico com bagageiro placas RT-1719 estava ao lado do carro Puma, com um emblema do 1º BPE.
6h05min — Justifico telefonema dizendo que está na cirurgia, Dr. Marcos (codinome do capitão ferido), ortopédica nos braços.
17h — Fui para casa.
Sábado, 2 de maio de 1981
Molinas retorna ao DOI-Codi e manda recado ao capitão ferido para que não se pronuncie a respeito do acidente:
8h30min — Chegada ao destino (…)Transmitida mensagem ao Dr. Marcos (codinome do capitão ferido) para não fazer esforço para falar, tranquilizando-o.
(…) Comandante do DOI e comandante do 1º Exército foram para o enterro e hospital.
Foi dada ordem para oficial de permanência ficar em tempo integral no DOI.
A Farsa
Ainda no dia 2, um manuscrito com letra diferente à do coronel Molinas Dias revela uma tentativa de encobrir a autoria do atentado. Foi anotada (talvez por um ordenança do coronel) a necessidade de encontrar o carro particular do sargento morto e providenciar o seu recolhimento ao DOI-Codi. O objetivo pode ter sido evitar que material comprometedor, dentro do veículo, fosse apreendido pela Polícia ou fotografado pela imprensa:
Foi feito contato com a secretaria de segurança para localizar o carro do Wagner (codinome do sargento morto) e comunicar ao DOI (carro roubado). Existe uma equipe de sobreaviso para “puxar” (levar) o carro.
A anotação segue:
Foi mandado ao 1º Exército (coronel Cinelli) as fotografias das placas com VPR para aproveitamento na imprensa.
A frase de Molinas Dias só ganhou sentido tempos depois, quando ex-integrantes da ditadura revelaram que agentes do DOI-Codi picharam placas de sinalização de trânsito nas imediações do Riocentro com a sigla da organização de luta armada de extrema esquerda Vanguarda Popular Revolucionário. O objetivo dos militares com a pichação era atribuir a autoria do atentado à VPR. Seria uma explosão planejada para botar a culpa em esquerdistas, como descreve o ex-delegado da Polícia Civil Cláudio Guerra no livro Memórias de uma Guerra Suja.
O coronel Molinas Dias avança seu memorando pelo dia 2 de maio, relatando supostas ameaças de bomba na casa do capitão ferido e no hospital Miguel Couto:
13h01min — Família do Dr. Marcos (codinome do capitão) liga para o Dr. Carmelo (codinome de um oficial) no hospital e participa a existência de um embrulho suspeito na porta do apartamento. O Dr. Carmelo telefona ao Dr. Maurício (codinome), oficial permanente, que esta providenciando o deslocamento de uma equipe para o local. (…) sob o tapete da porta de entrada tem uma bolsa do Carrefour de material translúcido e dentro tinha dois pães, um inteiro e outro faltando um pedaço.
As supostas ameaças contra integrantes do DOI prosseguem ao longo do dia 2:
16h10min — O delegado Tufic, da 14ª DP, telefona para dizer que recebeu dois telefonemas anônimos dando conta de que o capitão Paulo Renault iria jogar uma bomba no quarto do capitão hospitalizado.
16h18min — Telefonema para a residência do capitão Paulo Renault, que não atende.
16h20min — Ligação para a portaria do prédio que diz, possivelmente o capitão estaria viajando.
Conforme o blog do jornalista Ricardo Noblat, o capitão seria um Paulo Renault, engenheiro eletrônico, perito judicial e também ex-agente do Serviço Nacional de Informação (SNI). Em 2005, esteve envolvido no escândalo da CPI dos Correios. Estaria disposto a fazer revelações em depoimento à Justiça, mas desistiu ao ter a casa metralhada.
O dia 2 de maio de 1981 continua interminável, nas anotações de Molinas. Agora surge outra notícia de plano para matar o oficial ferido, talvez uma manobra para enfatizar que o capitão do DOI-Codi tinha sido vítima de um atentado
16h45min — Dr. Wilson (codinome de oficial) liga dizendo que o pessoal do hospital acha bom chamar o plantão policial e a imprensa, dizendo que tinham conhecimento de um plano para eliminar o Dr. Marcos (o capitão ferido).
E continuam as supostas ameaças no dia 2, tentando transformar o capitão de terrorista em vítima. Molinas pede segurança:
22h25min — Telefonema do Dr. Marino (codinome de um oficial) avisando de um telefonema anônimo para o Hospital Miguel Couto, avisando que colocariam um petardo na casa do Dr. Marcos (capitão ferido).
22h30min — Telefonema para o o tenente-coronel Roberval e pede providências junto à PM.
Domingo, 3 de maio de 1981
Molinas anota telefonema recebido de um colega coronel:
8h25min — Telefonema do coronel Prado, dizendo que o JB (Jornal do Brasil) tem reportagem em que um médico diz que o capitão estaria em condições de falar. O assunto é tratado com o coronel Cinelli.
Mais tarde, outro telefonema — ainda mais preocupante — fala que os agentes se tornam suspeitos de explodir a própria bomba que os feriu:
15h50min — Agente Hugo (codinome de policial) liga dizendo que o segurança do Riocentro está comentando que o atentado seria nosso.
Para mudar o foco e jogar a culpa do atentado fracassado no Riocentro na esquerda, Molinas rascunha uma lista de incidentes anteriores, como a suposta tentativa de ataques a unidades militares. O texto é datilografado e enviado ao coronel Cinelli.
Antecedentes — Viemos apresentar alguns fatos que comprovam a intenção das esquerdas em atingir os órgãos de segurança, em especial os DOIs, tanto no campo da agressão física como em ações psicológicas com objetivo único de desmantelar o aparato repressor ou destruí-lo.
No final de 1980 ficaram encarregados de eliminar o Exmo senhor general Antônio Bandeira, no Sul do país… O atentado seria com risco da própria vida.
Molinas conclui:
Face aos atos e fatos apresentados, somados a uma orquestração pela imprensa, acusando os DOIs como responsáveis por tudo que ocorre de mal contra as esquerdas (…) cada elemento do órgão passou a ser um alvo de justiçamento. (…) Quanto ao atentado em si, qualquer conclusão cairá no campo da especulação, correndo o risco de atentar contra a honra e a integridade de um oficial e de um sargento.
Segunda-feira, 4 de maio de 1981
O diário é recheado de documentos. Um deles, um ofício que chega ao DOI-Codi do coronel Luiz Antônio do Prado Ribeiro, encarregado do inquérito policial-militar (IPM) que investiga o atentado. Ele convoca o coronel Molinas Dias para depor às 14h do dia seguinte no 9º andar do Palácio Duque de Caxias, sede do comando 1º Exército.
Quinta-feira, 7 de maio de 1981
Uma relato datilografado informa que às 17h40min, o capitão ferido foi do CTI para a sala de radiografia. E aparece no CTI uma mulher, vestindo calça e jaleco branco, se dizendo médica, perguntando ao PM da segurança onde é o CTI. A mulher usa sapato verde e o PM desconfia dela. O crachá está virado e, ao desvirar, lê “visitante do IBGE”. A mulher é levada para fora do hospital e embarca em uma Brasília do Jornal do Brasil.
Sexta-feira, 9 de maio de 1981
Documento confidencial relata um telefonema ao DOI-Codi, às 15h, repassando dados sobre uma mulher de nome Mariângela ou Ângela Capobianco e o local do trabalho do marido dela. O interlocutor descreve a mulher:
“Mais ou menos 45 anos, estatura média, meio gorda, cabelo pintado de caju. É importantíssima, está autorizada (muito cuidado). Trabalha na diretoria de vendas ou arrecadação”.
Para entender: Ângela era uma diretora do Riocentro e, segundo livros sobre o tema, é suspeita de ter colaborado com os militares. Após afastar das funções o chefe de segurança do Riocentro, na noite do atentado, ela teria sido responsável pelo fechamento com cadeados da maioria dos portões de saída da área do show. A medida, em caso de explosão de uma bomba, poderia amplificar o número de vítimas.
Em 2014, Ângela Capobianco foi identificada pela Comissão Nacional da Verdade[18][19] como sendo uma agente do SNI, uma das pessoas encarregadas dos preparativos do atentado. Documentos do ex-comandante do DOI-Codi, Julio Miguel Molinas Dias, o Coronel Molinas, registram fatos e participantes nos preparativos para a explosão das bombas no Rio.[20][21]
No programa Linha Direta de 2004, anteriormente aos fatos apurados pela Comissão Nacional da Verdade, Maria Ângela foi entrevistada como a gerente do Rio Centro na ocasiao.[22]
Quarta-feira, 13 de maio de 1981
Documento afirma que, às 22h de 10 de maio, no bar do Hospital Miguel Couto um homem, em voz alta, acusa o DOI-Codi pelas bombas colocados no Riocentro e no jornal Tribuna da Imprensa. O homem e um amigo dele são levados para a 14ª DP. Lá são interrogados e liberados. São eles: José Augusto Alves Neto, da Rádio JB, e Carlos Vieira Peixoto Filho, do JB (jornal).
Datado deste dia, um manuscrito contém duas perguntas e respostas atribuídas ao agente Guarany (amigo do sargento morto) sobre as habilidades com bombas do agente Wagner (codinome do sargento morto):
Wagner é técnico em explosivos? Não
Qual o curso ou estágio que fez: Nenhum. É um autodidata
Quarta-feira, 20 de maio de 1981
Em um documento reservado, enviado ao chefe do serviço de inteligência do 1º Exército, Molinas comunica os nomes dos agentes do DOI-Codi escalados oficialmente para “cobrir” o show: sargento da Aeronáutica Carlos Alberto Henrique de Mello e o soldado da Polícia Militar Hirohito Peres Ferreira. O ofício afirma que o chefe da Seção de Operações, capitão Machado, e o sargento Rosário (os vitimados na explosão no Puma) foram ao Riocentro para supervisionar a equipe. Seria a primeira vez que o nome de Machado e Rosário aparece em um documento oficial como tendo participado da desastrada Missão 115.
Segunda-feira, 25 de maio de 1981
Documento confidencial encaminhado às unidades militares pelo comando do 1º Exército sob o título “Atentado Terrorista no Riocentro – informação 312/81” determina ponderação, serenidade e isenção diante de “notícias apresentadas por certos setores da comunicação sensacionalistas e alguns políticos, que muitas vezes não correspondem à verdade”.
O documento afirma que o coronel Luiz Antônio do Prado Ribeiro, encarregado da investigação militar do atentado, foi substituído, pois está “baixado no HCE (Hospital Central do Exército) desde 18 de maio para observação, foi submetido à junta de saúde, cuja ata do exame recomenda que lhe sejam concedidos 30 dias de licença para tratamento de saúde”.
Anos depois, viria a público a versão de que Ribeiro foi afastado do inquérito porque se recusara a acatar ordens superiores. Teria sido, inclusive, chantageado para reunir provas que apontassem grupos de esquerda como autores do atentado.
Referências
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Bibliografia
- Ministério do Silêncio, Lucas Figueiredo, editora Record
- Dez reportagens que abalaram a ditadura, organizado por Fernando Molica. Ed. Record, 2005. O Caso Riocentro mereceu dois capítulos, com a transcrição, comentada pelos próprios autores, das matérias publicadas pelo jornalista Antero Luiz Cunha no estado de São Paulo e por Fritz Utzeri no Jornal do Brasil.
Ligações externas
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- † Pedro Aleixo foi impedido de exercer a Presidência em 1969, porém, a lei n.º 12.486, de 2011, determinou que “figurará na galeria dos que foram ungidos pela Nação Brasileira para a Suprema Magistratura.”
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